Como é que temos, simultaneamente, tanta e tão pouca liberdade? Liberdade de expressão, religião, identidade. De consumir como bem entendermos. De ter famílias, carreiras, estilos de vida diferentes. Bem como de partilhar tudo, ou nada. Liberdade que traz riscos que não existiam antes de a termos (e a querermos). Liberdade que se amplifica para o bem ou mal num instante de um clique. Cada passo é vigiado por uma vasta rede social que analisa, julga, critica. E nós, constantemente em busca de aprovação, agimos na dicotomia do querer uma coisa mas fazer outra.
Ora, as marcas vivem no mesmo mundo com os mesmos dilemas, e têm que comportar-se em função deles, aceitando a responsabilidade de que são maiores do que um único indivíduo. Quando chamam à atenção, os lucros, os benefícios, e a fama podem ser atingidos estupidamente rápido, mas os riscos e as consequências também podem ser estupidamente maiores.
Dito isto, falemos então de propósito, que não pode ser só propósito despropositado. Já não podemos mais com ele.
Tendo em conta o tema anterior faz muitíssimo sentido a teoria de Tom Roach, estratega de marca e comunicação, de que o conceito de propósito (ou a febre dele!) foi a inevitável consequência das críticas pela falta de moral e ética de que os publicitários foram alvos, levando-os a questionarem o seu papel na sociedade. A procurar aprovação. Desde então que adoptam o conceito com unhas e dentes para provar que têm valores.
O próprio Byron Sharp, reconhecido professor de marketing e autor do famoso “How Brands Grow”, é da mesma opinião. Considera que a busca de propósito acontece por sentirmos que o marketing é desrespeitoso e cruel e querermos fazer algo para compensar. Pode ser que seja verdade. Eu tenho 24 anos e um curso de psicologia e acabei nesta área por circunstâncias da vida, mas principalmente porque o “Goodvertising” do Thomas Kolster me convenceu de que poderia fazer algo verdadeiramente bom. A culpa é da minha geração que quer mudar o mundo. Enfim, continuemos.
Andy Pharaoh e Christopher Miller falam de contribuições significativas através das marcas com as quais trabalham (Mars e Ben & Jerry’s, respetivamente), que surgem de uma base estável e focadas na acção. Defendem que não se trata de marketing. A Ben & Jerry’s faz um bom trabalho porque reconhece que a agir tem mais sucesso que a falar. E não comparemos estas missões com missões de marcas como a Patagonia que comunica com base na responsabilidade ambiental, pois nesse caso a missão surgiu antes de um mundo cheio de propósitos e marcas heroínas.
Ian Murray, co-fundador de House51, é da mesma opinião. De acordo com os seus estudos, a responsabilidade social funciona melhor pelo que é percebido indirectamente, sendo que as mensagens demasiado explicitas são facilmente consideradas oportunistas.
O que nos leva a outro tema – ‘timing’. E aqui deixo uma nota. As marcas que lutam contra o racismo repetidamente são credíveis. As que fizeram uma campanha de improviso pontualmente no momento da morte de George Floyd são incontrolavelmente oportunistas. Vejamos a Aunt Jemima, por exemplo, que foi essencialmente construída em cima de estereótipos raciais e repentinamente quer mudar a sua imagem de marca neste preciso momento no tempo… Por favor! É pura hipocrisia, na minha opinião. As marcas que consistentemente se provaram inclusivas são consideradas isso mesmo. E as que nunca se pronunciaram e, subitamente, no mês LGBTQ+ são especialistas no tema, só podem ser criticadas. E por aí fora. Isto não significa que uma marca não evolua e comece a abordar seriamente certos assuntos quando apropriado. É, no entanto, um processo demorado e trabalhoso, que não terá êxito quando menosprezada a afinidade do ADN da marca nesse mesmo tema.
Prosseguindo, consideremos mais uma perspectiva acerca de propósito. Paul Burke, da AMV BBDO, defende que a própria indústria é que se esqueceu do seu propósito – persuadir as pessoas a comprar, seguir o fluxo mercantilista, pura e simplesmente vender. Paul supõe que precisamos de redescobrir o nosso propósito e que ao vender poderemos acabar por fazer mais coisas maravilhosas ajudando a economia. Por outras palavras, acredita que se pararmos de nos focar em salvar o mundo, poderemos acabar por fazê-lo.
Não poderia deixar de mencionar Thomas Kolster, (o autor de “Goodvertising” e agora de “The Hero Trap”), o grande defensor de propósito que me persuadiu a trabalhar em agências. Este alerta-nos para o facto de que a nossa abordagem já não está a funcionar. Não deveria ser uma corrida de quem sacrifica ou se importa mais. Imaginemos um mundo pós-propósito, em que não é sobre vender o que fazemos ou como o fazemos, e sim aquilo em que podemos ajudar uma pessoa a tornar-se. Não precisamos de mais marcas a pregar, mas sim ‘coaches’ que ajudem as pessoas a atingir objectivos e ultrapassar obstáculos. “Queridas marcas, não sejam activistas, tornem as pessoas activistas das duas próprias vidas”. Eu compro.
Apesar de todos os pontos de vista divergentes, há que notar que todos têm o potencial para tornar o mundo ligeiramente melhor. Se por meio de tentarmos provar o nosso valor como publicitários atingirmos o fim de inspirar alguma mudança positiva, que assim seja. Se ao querermos vender para cumprir o nosso verdadeiro papel ajudarmos a economia a sobreviver, melhor. E se for apostando nas pessoas para serem elas mesmas as activistas e, dessa forma, algumas trouxerem algo de bom ao mundo, melhor ainda.
(In)felizmente, relembro que faço parte de uma geração que quer mudar o mundo. Isto posto, poderemos ter gasto o conceito de propósito e roubado a credibilidade à palavra, mas acredito que cada um o encontrará no que faz, ainda que o intitule de qualquer outra coisa. No final das contas, mesmo para os que não acreditam no conceito, estamos conscientemente ou inconscientemente, a contribuir para um mundo, diria eu, melhor. O que não podemos continuar a fazer é insistir em encontrar e pregar propósito despropositado com cada marca que nos aparece à frente.
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